quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uma ficção sediada em Alfena.

É tarde, não vem ninguém. Faz frio fora, deve ser isso. É tarde.

Estou sentado nesta minha cadeira de barbeiro a ler o jornal, a ler aquelas notícias de segunda linha que o dia ainda não me permitiu ler. O mundo está virado de pernas para o ar. O mundo não está bem.

Em outros tempos estaria não sentado mas de pé e a tosquiar alguém, e com um ou dois clientes sentados e à espera. Falaríamos sobre esse mundo que congela lá fora, distribuindo queixas. Pequenas queixas, nada que se pareça com os problemas de hoje. Toda uma barbearia tenho eu aqui, todo um espaço que afinal se aproxima a passos largos de ser um museu, um espaço arqueológico. A trinta metros o Paulo, conheci o pai, vi este miúdo crescer, intitula-se cabeleireiro. Eu não, sou só barbeiro. Deixa-me ver se me escapou alguma coisa no Desporto.

Antes a casa estava pintada de novo e não tinha este aspecto lúgubre. As couves e o resto do terreno à volta estavam bem cuidados. O anexo não parecia arruinado. Eu sei que dupliquei as portadas, foi-me exigido. Mas pintar a casa de novo, lavar a cara a isto, a este caixão antecipado… não vale a pena. Vejamos a necrologia.

A minha filha tem vergonha de mim. Trabalha num banco. Ela diz que manda, que é directora e muito amiga deste e daquele, que rápido subirá ainda mais… O marido é uma besta e não são felizes, eu sei. Mas, enfim, de que palavra me fui eu agora lembrar, onde está escrito que a felicidade é um direito, sequer um objectivo plausível… A minha filha não é feliz, mas esse não é o verdadeiro problema.

Ela tem um único filho. O pobre rapaz é maltratado por ela e ignorado pelo pai. Verdade seja dita que eu também não lhe acho grande piada, sempre constipado e com medo de tudo. Eu sei que esses medos todos são presente dela, mas que posso eu fazer… A minha mulher, a quem eu carinhosamente chamo de “Monstro”, acha que ele vai ser um grande homem. Para tal convinha começar a esticá-lo…

Não acredito que alguma vez a minha filha tenha contado a quem quer que seja lá no trabalho que o seu pai é barbeiro. Eu sei isto porque o miúdo já se descaiu mais do que uma vez sobre como “a mamã falou ontem com um ministro” e “amanhã se calhar vamos jantar com um secretário de estado que também é visconde”, ora eu sei que ela não conhece ninguém desse estilo. Compreendo um pouco que ela pretenda passar um pano sobre isto, Alfena, a barbearia, as tesouras, os caldinhos. Passar ou colocar sobre, ocultar, um banco deve ser um mundo de aparências, um teatro, um jogo de marionetas, e a minha filha nem é particularmente bonita, nem particularmente inteligente. Mas exagera. Tudo o que ela é a mim o deve. A mim… e um pouco ao “Monstro”. Não sei bem a quem foi ela buscar mais o dom para a mentira. Ah, pois, eu sou militar, ou melhor, sou um sargento, que é uma classe à parte. Os sargentos levam o que de melhor a vida militar oferece. Só é preciso mentir aos oficiais e dar-lhes a ilusão de que são eles que mandam… Terá sido em mim que ela foi buscar a vocação, portanto.
A minha filha tem-me parecido mais nervosa que o habitual. Os bancos não estarão bem, porque o país menos ainda. Não é ela quem o diz, é este jornal, que eu já li umas duas vezes. Acho que vou para cima. Hoje já não vem ninguém. Melhor que não a despeçam, pois antes até a podia empregar aqui na barbearia, a fazer umas unhas, cuidar duns pés. Agora não. Não há movimento.


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